CULTURA COM ESSÊNCIA

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"Os Dois Papas", por André Bacci



O novo filme de Fernando Meirelles tomou os espectadores do Festival de Toronto completamente de surpresa. O que se poderia esperar de um longa que pretende especular os conteúdos da conversa entre o Papa Benedito XVI e o Cardeal Bergoglio, logo antes deste primeiro resignar ao cargo e o segundo se tornar Papa Francisco? Muita coisa, na verdade.

Anthony Hopkins é o Papa Bento e Jonathan Pryce o Cardeal Bergoglio.

"Os Dois Papas" surpreende, em primeiro lugar, por seu tom leve e descontraído: o filme pretende humanizar os seus dois personagens principais,brilhantemente interpretados por dois gigantes, Anthony Hopkins e Jonathan Pryce. Nos momentos que antecedem a visita de Bergoglio à Roma, Meirelles já emplaca uma sequência impecavelmente dirigida das ruas de Buenos Aires - com uma narração em off acompanhando os grafites nos muros - até se centrar na figura de Bergoglio, enquanto ele passa um sermão, logo antes de ficar sabendo da morte do então Papa João Paulo II, em 2005.

Numa das cenas subsequentes, durante o conclave que transformaria o Cardeal Ratzinger (Hopkins) em Papa, os dois astros do filme têm um encontro fortuito no banheiro, e o personagem de Pryce assobia alegremente a melodia de “Dancing Queen”, do ABBA. A seguir, Meirelles se aproveita da inércia humorística para colocar uma reinterpretação da música pop como trilha da votação para eleger o novo Chefe do Vaticano. A decisão ousada dá uma qualidade deliciosamente profana à cerimônia sagrada, que, por sua vez, é filmada de modo a ressaltar não só a direção de arte e figurino meticulosos, mas também a tensão política do embate: num contexto de declínio da Igreja, os candidatos mais proeminentes ao papado representam facções opostas do catolicismo, com Ratzinger defendendo o conservadorismo, e Bergoglio, o progressismo.

Confissões ao pé do ouvido.

A qualidade da direção estabelecida se mantém durante toda a duração do filme, mas ela é mais evidente a partir do momento em que Pryce e Hopkins contracenam. Aqui, a recusa da câmera em ficar parada, tão típica dos filmes de Meirelles, é
essencial para ditar o tom das cenas: a princípio, o encontro do Cardeal e do Papa é recheado de uma hostilidade polida, e o filme transmite esse sentimento em close-ups e cortes rápidos, como se emulasse uma disputa; quando o alívio cômico vem (na forma de um aparelho eletrônico que ordena ao Papa que faça exercícios, por exemplo), a câmera retorna para planos médios. Para apreciar os cenários grandiosamente construídos, toma-se uma nova distância, criando panoramas, enquanto os dois atores caminham pelos jardins e conversam sobre os rumos da Igreja, a natureza do perdão, e a presença de Deus, com um domínio arrebatador de suas personalidades e maneirismos, numa espécie de reimaginação sagrada da trilogia “Before” de Linklater. Às vezes, quando surge o delicado assunto dos abusos de crianças nas Igrejas, a câmera se esconde e tremula por trás das árvores, como se estivéssemos assistindo a uma filmagem clandestina, algo que não deveríamos ver. Outras vezes, mais adiante na trama, os tremores e o foco inquieto simulam uma versão de um vídeo caseiro, que captura o intimismo inusitado que surge da relação dos dois.

Dois Papas é inspirado em fatos.

Não é de se admirar, portanto, que a premissa audaciosa do filme funcione tão bem. Estruturalmente, "Os Dois Papas" não é exatamente inovador, com uma progressão bem tradicional da trama, que intercala os momentos mais leves com os mais dramáticos, como a confissão do Papa Bento XVI de que ele desejava sair do cargo,
ou os flashbacks de Bergoglio quando ele se aliou à ditadura Argentina para tentar proteger a Igreja (que, por vezes, se alongam mais do que o necessário, e nos fazem desejar que Meirelles confiasse mais na capacidade de Pryce de transmitir a sua história através de sua voz e expressão). A sua originalidade se encontra, na verdade, no tom que o filme encontra para tratar de figuras quase sempre vistas com reverência - ou desdém -, mas nunca como pessoas, criando assim uma história que pretende representar, com uma ingenuidade cativante, a união das diferenças em busca de um bem comum. 

Impulsionado por duas performances fenomenais e com um domínio pleno da direção e dos seus mecanismos técnicos, "Os Dois Papas" é uma grata surpresa, um filme incrivelmente acessível e divertido, e um dos candidatos mais certeiros à temporada de premiações.


O diretor Fernando Meirelles
Sinopse

Do diretor Fernando Meirelles, indicado ao Oscar por Cidade de Deus, e do roteirista Anthony McCarten, três vezes indicado ao Oscar, o filme narra uma história intimista de uma das mais dramáticas transições de poder dos últimos dois mil anos. Frustrado com a direção da Igreja, o cardeal Bergoglio (Jonathan Pryce) pede permissão ao então papa Bento XVI (Anthony Hopkins) para se aposentar, em 2012. Em vez de aceitar o pedido, enfrentando escândalos e dúvidas, o introspectivo papa Bento chama a Roma seu mais severo crítico e futuro sucessor para revelar um segredo que abalaria os fundamentos da Igreja Católica. Por trás dos muros do Vaticano, começa uma luta entre tradição e progresso, culpa e perdão, pois esses dois homens muito diferentes enfrentam elementos do passado para encontrar um terreno comum e criar um futuro para um bilhão de seguidores em todo o mundo. Dois Papas é inspirado em fatos.


Assista o trailer



Direção: Fernando Meirelles
Roteiro: Anthony McCarten
Fotografia:César Charlone
Montagem: Fernando Stutz
Música: Bryce Dessner
Elenco: Anthony Hopkins, Jonathan Pryce, Juan Minujín
Produtor: Tracey Seaward
Produção: Netflix
Distribuição: Netflix
Classificação: 12 anos

O longa  faz parte da seleção de filmes da 43a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.



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